9 de dez. de 2015

Setenta discípulos, uma missão e três lições sobre perseverança

Por Wallace Góis


Lucas 10.1-20

A escolha de “outros setenta” faz ampliar o círculo de discípulos e discípulas de Jesus. Eles eram, até então, apenas doze comissionados (Lc 9). Agora são mais setenta. O número setenta é múltiplo de sete, que significa plenitude, perfeição, abrangência. O evangelho de Lucas é especial porque deu destaque a essa característica da missão cristã, que atinge a pessoas de todas as nações, épocas e condições sociais, e as incluem no projeto de redenção. Não é à toa que essa narrativa só aparece aqui. Jesus segue a tradição mosaica em que setenta anciãos receberam uma porção do Espírito de Deus (Nm 11). Eles foram responsáveis por expandir a comunicação que Deus mantinha com o povo, antes apenas através de Moisés.

Apesar de essa estratégia garantir um número maior, que inclui e empodera uma quantidade maior de gente, preocupa-se com um aspecto sempre indispensável: os laços de cooperação e comunhão numa dimensão mais íntima: eles foram de dois em dois. Ninguém deve caminhar sozinho, não só por causa da importância vital de ter sempre alguém ao lado para ajudar, mas também pela necessidade de compartilhar, de se doar para o bem do outro, de ajudar alguém a crescer. Os números dessa passagem são simbólicos, mas os princípios que eles carregam não são: inclusão, comunidade, partilha.

O papel das discípulas e discípulos seria o de preceder Jesus nas cidades por onde ele passaria. O sucesso da ação do mestre dependeria de quem o antecedesse. Quem se dispõe a seguir a Cristo deve saber que, na verdade, será a primeira demonstração de seu amor e palavras. Para falara a verdade, o próprio Jesus se faz presente na trajetória de seus discípulos, tanto pela repetição de sua prática, quanto para cumprir a promessa de estar sempre com eles, até o fim dos tempos (v. 16).

Mesmo sendo setenta, eles ainda eram poucos, por que a demanda é maior (v. 2). O ambiente de missão terá sempre maior necessidade do que pessoas dispostas a supri-la. Principalmente porque os desafios e riscos que a envolvem são desanimadores e, por vezes assustadores como é uma alcateia de lobos ao redor de uma ovelha (v. 3). É por esse motivo que as exigências que Jesus fez deles fazem sentido. Assumir a missão num ambiente inóspito exige desprendimento e determinação (v. 4, 7).

Mas, como funciona essa tal de missão que eles tinham – ou que nós temos? A tarefa deles era de entrar nas cidades e avisar que “o reino de Deus está próximo”. Deveriam começar pelas casas, isto é, onde a amizade e a partilha do alimento aconteciam. Onde você pode ser quem você é. Os lares foram os primeiros locais de cultos das comunidades cristãs e são um contraponto à frieza e imobilidade do templo e das sinagogas. Até hoje, as comunidades cristãs se reúnem em casas Essas incursões do bem seriam marcadas com manifestações da graça de Deus, isto é, de “curar os enfermos que lá estiverem” (v. 9). Por outro lado, deveriam bater a poeira dos pés, em sinal de protesto a quem decidir permanecer como está, mostrando o quão errada foi essa escolha.

Quem escolher não abraçar a mensagem do reino, porém, deve ficar ciente dos benefícios de que deixará de participar. O reino tem abrangência no presente e no futuro. É uma proposta de vida que rompe aos padrões corrompidos da humanidade que segue aos projetos de poder, lucro e desumanização que em todas as épocas se manifestou através de grandes impérios, de grandes manifestações do tão denunciado “anticristo”, isto é, de quem se apresenta como salvador e solucionador de problemas, mas que na verdade torna tudo pior. O triste fim de quem abraça o reino de morte dos anticristos que se levantam e caem ao longo da história, caminha para ser ainda pior do que a da cruel Sodoma.

Entendido isso, vamos a três lições práticas:

1. O reino de Deus anuncia um começo e não um fim. O juízo anunciado contra as cidades por onde os discípulos e o próprio Jesus passaram vem em contraponto ao que os doze invocaram pouco antes (9.54-56). A moral da história é que Deus não quer a destruição de ninguém. Porém, as consequências de quem segue aos reinos poderosos do mundo é ter o mesmo fim deles. E quanto a isso os discípulos não deveriam se preocupar: somente a Deus cabe a condenação. A justiça de Deus sempre se manifesta contra a mão dos opressores, mas sua principal bandeira é estabelecer seu reinado de paz. Antes de ser anúncio da queda do mal, o reino de Deus é o anúncio de uma nova ordem que nasce em Jesus, continua em nós e se completará plenamente quando ele voltar. O reino de Deus trata de transformar a vida dos discípulos, que transformarão a outras vidas e às estruturas que os cercam em expressões da vontade de Deus.

2. O reino deve ser anunciado tanto aos que o recebem quanto aos que não o recebem. Quando um mensageiro trazia uma notícia, saudava a pessoa de casa dizendo “paz seja convosco”. O aceite do cumprimento significava a concessão da palavra ao arauto. No caso de o discípulo ouvir um “não”, deveria ainda assim dar o recado: “Mas quando entrarem numa cidade e não forem bem recebidos, saiam por suas ruas e digam: ‘Até o pó da sua cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vocês. Fiquem certos disto: O Reino de Deus está próximo.” (v. 10-11). Por muito tempo esse texto foi utilizado como ultimato aos “incrédulos” e desculpa para simplesmente abandonar as pessoas e os projetos. Na verdade, ele representa os dois públicos com quem o discípulo se depara na missão: os que receberão a “paz” e os que precisarão de nossa insistência. Esse texto me faz imaginar uma cena engraçada, que talvez expresse um pouco a essência da mensagem que ele traz. Imagino o discípulo sendo enxotado por pedras e, enquanto foge correndo, ergue um pouco a túnica para não enroscar os pés que vão deixando para trás a poeira daquela cidade. Porém, olha para trás e grita: “eu vou embora, mas fique sabendo que o reino de Deus está próximo!” Por quanto tempo Deus teve que insistir com você até que tomasse consciência de seu compromisso com ele?

3. O reino de Deus é mais do que palavras para o coração, é cura integral para a vida. Uma geração inteira de cristãos acreditou que anunciar o reino de Deus se resumia e entregar um folheto evangelístico ou pregar o evangelho em alto som pelas praças. É bem verdade que isso contribuiu muito para que pessoas encontrassem o caminho de Cristo, mas não encerra a nossa missão e muito menos completa no indivíduo tudo o que o poder do evangelho faz. Os doentes nas casas que recebessem a saudação da paz receberiam curas. Curas estas que representam a manifestação da vida que emana do Cristo. Curas que mostram uma preocupação com a dignidade integral e manutenção da vida para que ela seja plena. A missão não se resume a conduzir pessoas para uma igreja. Ela é, antes de tudo, transformar a realidade de uma pessoa, sociedade, nação através da promoção da justiça do reino de Deus, através da cura que não só muda a filiação religiosa de ateu para crente, mas de uma figura desumanizada para imagem de Deus.

O chamado dos discípulos é para a insistência, para a perseverança. Jesus enviou setenta discípulos que não deveriam se dar por vencidos ao primeiro sinal de rejeição, ou se iludirem com manifestações sobrenaturais (v. 17-20). A grande motivação das ações deve ser a de ter seu nome escrito nos céus, isto é, de estar incluído no projeto que você mesmo está promovendo. O projeto do Reino de Deus que vai se instalando gradativamente até que seja dia perfeito. O discípulo ou discípula de Jesus não descansa até que até que Deus seja tudo em nós, até que haja a ressurreição, que é a vitória final da vida sobre a morte, da dignidade sobre a indignidade (1Co 15.26-28).

Sermão pregado na ICPB São Bernardo do Campo, em 15 de novembro de 2015

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