14 de mar. de 2014

Adoração em forma de cruz



“Ame a Deus de todo o teu coração e acima de todas as coisas, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Essa talvez seja a frase mais famosa da Bíblia, e ao mesmo tempo, a mais negligenciada.
Houve um tempo, não muito distante de nós e que talvez ainda não tenha passado, em que os cristãos, teólogos ou não, debateram bastante sobre qual é a melhor expressão do cristianismo, ou, qual é a verdadeira adoração. Uma vertente mais progressista defendia que a adoração cristã é exclusivamente horizontal, ou seja, se dá nas relações políticas e sociais, à medida que trabalhamos pela implantação do reino de Deus na terra. Do outro lado, os mais conservadores defenderam que a verdadeira adoração é vertical, isto é, não se envolve com problemas temporais (que se sujeitam ao tempo) e se importa em adorar a Deus e reconhecer sua santidade e seu juízo iminente, além de aguardar a volta de Cristo que é o único que pode transformar todas as coisas. Resta-nos a urgente tarefa de pregar a salvação eterna. Porém, o evangelho não é exclusivamente vertical e nem horizontal. O ensino do evangelho, e a vida de adoração tem a forma de cruz, como veremos adiante.
A ética judaico-cristã se baseia no amor, tanto a Deus, quanto ao próximo. Amar a Deus significa reconhecer sua soberania, sua santidade, seu amor, sua graça, sua justiça. É obedecer aos seus preceitos e louvá-lo com os lábios, com o coração, com a vida. Cada passo, cada atitude ou pensamento, seja em ambiente religioso ou não, no público ou no privado, deve ser um reconhecimento da glória de Deus. Amar a Deus implica em temor ou respeito à sua grandeza e aos seus ensinos. Amar a Deus é não se desligar da sua vontade, do seu Reinado entre nós. É compreender nossa dependência dEle, e podermos, com liberdade e carinho, chama-lo de pai, por ser criador e provedor, e sentir seu afago materno, como o da ave que acolhe seus filhotes debaixo de suas penas e lhes preserva a vida.

Porém, de certa forma, amar a Deus é relativamente fácil. Ele atende às orações, nos faz bem, é misericordioso, compassivo e perdoa mesmo os pecados mais graves. Difícil mesmo é amar as pessoas ao nosso redor, principalmente as que nos fizeram mal. Complicado mesmo é reconhecer a dignidade nas pessoas, especialmente naquelas das quais a sociedade mesmo já tratou de marginalizar ou que os nossos olhos, por vezes perversos, tratam de julgar. Por essas e outras dificuldades, nos esquecemos que a vida humana, em sua complexidade e beleza, é por si só, uma revelação de Deus, sua imagem, como descreve as Escrituras.

A famosa oração do Pai Nosso (Mt 6.9-13) é um exemplo interessante de amor a Deus e ao próximo. Antes, porém, precisamos entender que a maneira judaica de escrever segue mais ou menos a lógica de um sanduíche: com duas partes externas e o “recheio”, que determina o sabor do lanche. O núcleo do texto é a mensagem mais importante, enquanto a abertura e o fim completam a ideia central. No caso da oração de Jesus, a única maneira de “santificar o nome de Deus” e declarar que a Ele “pertence o reino, o poder e a glória para sempre”, é pedir a Deus que sua vontade seja feita na terra, a começar por nós. Na prática é nos conceder o pão diário, perdoar as nossas dividas da mesma forma com que temos perdoado os nossos devedores e nos livre do mal. Qual é a mensagem central? Parece-nos evidente que é a mesma explicada nos versículos 14 e 15, isto é, perdoar os que nos devem, e esta é a condição para receber perdão. Por isso, aprendemos que uma boa relação com Deus é precedida por uma boa relação com o próximo, no qual está a imagem de Deus, e vice versa.

Naquele tempo, uma dívida poderia facilmente custar tudo que alguém possuía, além de expor o sujeito a se tornar um escravo ou mesmo ser condenado à prisão (Cf. parábola do credor incompassivo, Mt 18.21-35). O cúmulo da falta de perdão e de amor, no exemplo de Jesus, se traduzia nas relações econômicas e sociais. Outro exemplo é quando Jesus, no sermão do monte, está aplicando um sentido mais profundo aos mandamentos relacionados ao próximo, e ao falar do “não matarás” (Mt 5.21-26), ensina que a obediência a ele começa evitando a ira, controlando a língua e buscando a reconciliação. O mestre enfatizava essa atitude, colocando-a antes de qualquer prática religiosa, inclusive a de fazer ofertas no altar.  

Em outras palavras, o centro da mensagem de Jesus, que aparece na oração do Pai Nosso é na verdade uma atitude: o perdão ao próximo, que conforme já vimos, era uma das expressões mais práticas de amor. Depois se expande para o cuidado pessoal (o perdão de Deus, o alimento de cada dia e o livramento do mal), e por fim, para o louvor a Deus. A oração, como um todo, é um pedido que inclui uma atitude de nos aproximar o máximo possível do Reino de Deus.

Aliás, orar é talvez o ato mais comum de devoção humana em quase todas as religiões. No cristianismo, é basicamente falar com Deus fazendo pedidos, agradecimentos e dirigindo palavras de louvor. Orar é se expor diante do Senhor, e abrir o coração para que o centro de sua vontade se faça presente em nosso ser, em nossa vida.

Adoração, da qual a oração também faz parte, vai muito mais além do que o momento de louvor musical nos cultos ou dizer palavras de exaltação a Deus: tem a ver com uma vida dirigida pelo Espírito e que se expresse sempre em atos de verdade, independente do lugar ou ocasião (Jo 4.19-24).

A cruz foi onde finalmente a distância imposta pela religião entre Deus e a humanidade foi eliminada de uma vez por todas. A morte de Jesus, aquele que veio revelar o próprio Deus, e deixou-se conduzir até às consequências finais de sua missão, foi marcada pelo rasgamento do véu do templo, uma barreira simbólica de separação entre o Altíssimo e os mortais. Nela Jesus fixou seus pés, sugerindo firmeza, atitudes concretas no âmbito da existência humana, e abriu seus braços como se estivesse a nos convidar e a nos abraçar. Na cruz, Deus e a humanidade se reconciliam e a igreja é enviada a proclamar o ministério da reconciliação ao mundo, aos humanos e ao restante da criação. Ela é o símbolo mais forte do cristianismo, por causa da mensagem e do exemplo que evoca.

A cruz é instrumento simples, formado por duas tábuas, uma na horizontal e outra na vertical, presas uma à outra de maneira bem firme. Apesar de ter servido como ferramenta de tortura e morte, nos trouxe grandes lições, a começar pela mensagem de que a adoração, ou seja, a vida dedicada a serviço do reino, acontece exatamente na intersecção das duas hastes. O significado disso para nós é bem simples: não há cristianismo, não há adoração, não há evangelho, não há missão e nem Reino de Deus se não houver uma relação plena e profunda com a Trindade e com o próximo, sem compromisso integral com todas as dimensões da vida humana e o cuidado com a criação. No cristianismo, uma espiritualidade individualista e independente de relações comunitárias e de engajamento no meio social não é adoração, é alienação. Da mesma forma, reuniões ou práticas centralizadas somente na responsabilidade social também não. Ambas têm o seu valor, mas a adoração verdadeira é baseada no amor por tudo que Deus ama, e por isso tem o formato de cruz, simbolizando comunhão plena com Deus e compromisso de vida com o próximo, seja ele quem for. Mesmo depois de dois mil anos, o convite para abrir mão de nossos próprios padrões e tomar a cruz como referencial para viver e caminhar continua aberto e esperando por candidatos, por pessoas que como Paulo digam que em nada têm a própria vida como preciosa, e estão prontas a gastar suas vidas em um projeto que realmente vale a pena: o reino de Deus e a sua justiça. Aqui, me recordo do clássico hino cristão que diz: "Levarei eu também minha cruz, até por uma coroa trocar." Sem cruz, a esperança futura pelo Reino de Deus pleno entre nós não faz sentido.

2 comentários:

Unknown disse...

Uau. Gostei. Esclarecedor e desafiador. Obrigado por compartilhar o que Deus tem compartilhado com você!

Wallace de Góis Silva disse...

Obrigado por nos acompanhar, André!