7 de fev. de 2014

Quem tem o poder?

Por Wallace Góis

Lembro que na minha infância um dos heróis mais populares era o He-Man. Seu nome genérico, cuja tradução literal seria Ele-Homem, passa a imagem de que qualquer um pode ser um herói se invocar os poderes corretamente. O príncipe Adam (ou Adão), um rapaz comum, se transforma num herói imponente, porque antes de ir às batalhas, ergue sua espada e grita: "Pelos poderes de Greiscow, eu tenho a força!" Quase na mesma hora, seu tigre medroso(!) se torna o Gato Guerreiro, e juntos, saem para defender o mundo de Eternia do malvado Esqueleto e seus pares. Como muitos garotos, também já quis ser o He-Man. Aliás, ter poderes para vencer desafios e obter reconhecimento é o sonho de todo ser humano, não é? 

Paulo, o apóstolo, disse que "o evangelho é poder de Deus". Justamente para dizer que o poder não é meu, nem seu. A frase vem a calhar no universo religioso, onde a maior parte das religiões em toda a história se sentiram tentadas a manipular os poderes do divino através de sacrifícios, oferendas ou palavras mágicas. E apesar do apelo constante de Jesus e de Paulo, o cristianismo não conseguiu escapar à regra e por muitas vezes fugiu da noção de poder do evangelho, que é contrária à lógica triunfalista que tem sido disseminada. No evangelho não há super-homens e nem super-mulheres.
Sempre fui de tradição evangélica-pentecostal, e nas nossas celebrações é comum se mencionar o poder de Deus, contar os milagres que aconteceram por intervenção divina, relatar experiências com o “sobrenatural”. Temos um jeito próprio de acreditar na ação de Deus, que está sempre presente, e que pode ser sentido. Ele interage diretamente com os humanos. Essa forma de entender não é só nossa, mas é uma de nossas marcas mais fortes. 

Os sociólogos dizem que se crê assim porque a maior parte dos pentecostais é pobre, e portanto não tem outros recursos senão acreditar numa intervenção direta de Deus, por exemplo, para resolver problemas do cotidiano como a saúde (pela falta de acesso aos convênios médicos) e dificuldades financeiras em geral. De fato, isso faz algum sentido, embora pessoas mais abastadas também busquem milagres para sanar problemas que o dinheiro não resolve. Os mesmos estudiosos reconhecem que a fé pentecostal, talvez mais no passado do que hoje, também tendeu a dar voz e vez a quem não tem, porque um culto que considera a dinâmica de uma presença viva e ativa do Espírito Santo capacita os fiéis a realizarem coisas que a sociedade jamais lhes confiaria. O operário iletrado se tornava pastor e a dona de casa uma pregadora. As mulheres encontram espaço entre as lideranças, as crianças e jovens se engajam em projetos. Niguém fica excluído. A realidade brasileira (e pentecostal) mudou bastante graças ao crescimento socioeconômico dos últimos anos, mas ainda hoje é possível perceber a importância do movimento entre os menos favorecidos. Para falar de poder eu poderia ter citado muitos outros segmentos religiosos, mas uso o pentecostalismo como exemplo porque é um dos mais expressivos e porque o conheço de dentro, e para mostrar que há razões diversas (algumas legítimas, outras não) que levam as pessoas a buscarem poder.

Como já dissemos, a tentação de se apropriar do poder não é nova, porém, parece estar sempre à porta. Percebemos isso quando humanos parecidos com nós passam a dizer que são milagreiros, que seu toque é sagrado, que suas palavras não cairão por terra. A arrogância acontece também por aqueles que simplesmente desconsideram ou desqualificam essa dimensão do cristianismo. E aqui está um dilema: apesar do perigo que ele carrega, precisamos sim de poder. Necessitamos do poder político, social, econômico e mesmo espiritual, e a religião parece fornecer esses poderes. Porém, alertamos que todo tipo de poder é perigoso, ainda mais quando todo o poder é dado a indivíduos tidos como especiais.

A teologia cristã, fazendo uso da Bíblia, contesta a soberba que permeia as afirmações dos pretensos messias do século 21 fazendo referência à graça e à sabedoria de Deus. Ao mesmo tempo, aponta para o poder divino que nos é dado para superarmos os desafios da vida e nos projeta a agir de forma relevante. Porém, Jesus nunca prometeu que todos os seus seguidores seriam vitoriosos ou que teriam milagres sempre à disposição. Quando falava do poder da fé, de vencer ou presenciar milagres, se referia a um contexto específico, e geralmente estava aliado ao deixar tudo para trás e abraçar o Reino de Deus e sua justiça, com a finalidade de glorificar o Pai. Essa decisão, paradoxalmente poderia significar perseguição, fome e morte. A ideia divulgada hoje parece a de que Deus existe só para aumentar meus rendimentos financeiros, salvar meu casamento ou tirar meu filho das drogas. Se fosse verdade, os discípulos teriam libertado o antigo Israel do poder de Roma, assumido o império e se assentado em cadeiras de honra, pois esta era uma expectativa sempre presente.

Minha história de vida não me permite afirmar que Deus não faz milagres porque se muitos episódios que vivi não forem chamados assim eu não teria outro nome para dar. Mas em muitos casos, os milagres não aconteceriam se eu não tivesse feito o que me cabia. Outros milagres simplesmente não aconteceram, apesar do meu esforço e de não haver razão para Deus não querer aquilo para mim. A bem da verdade, os discípulos de Jesus, aqueles mesmos que receberam poder "para pisar serpentes e escorpiões e nada lhes fariam dano algum", morreram a fio da espada, enforcados, crucificados e nem de longe ficaram cem vezes mais ricos do que eram antes de seguir a Jesus. Isso parece contraditório, mas não é. Porque mesmo assim, e justamente por isso, provaram da graça de Deus em muitos aspectos, inclusive com coisas extraordinárias, mas especialmente, receberam nova esperança, um novo caminho a seguir, uma comunidade de gente chamada para o mesmo propósito de lutar pela justiça e viver o Reino de Deus. No fim das contas, receberam até mais do que cem vezes!

Os milagres que o Deus da Bíblia fez/faz não obedecem aos critérios que imaginamos como  méritos, ou são imediatamente atendidos porque alcançamos a medida da fé necessária. Se lermos as passagens bíblicas que falam de milagres, há praticamente um critério diferente para cada um. Porém sugiro sintetizar em dois, que aparecem em todos: a graça e a sabedoria de Deus. Graça por que é amor, é presente (para o presente), que não pode ser comprado, merecido ou atraído por rituais. É pura liberalidade divina, mesmo quando não dizemos que é um milagre. E a sabedoria é porque, a meu ver, mesmo Deus podendo resolver todos os problemas da humanidade num estalar de dedos, Ele é sábio o suficiente para trabalhar conosco de uma forma mais pedagógica, visando nosso aprendizado e respeitando nossas escolhas, ainda que as coisas não saiam perfeitas do nosso ponto de vista. O poder de Deus é dele, mas por sua graça e sabedoria, compartilha conosco, na esperança de demostrar seu amor, e mais do que isso, nos empoderar para agir em amor.

Outra prova é que quando o diabo provocou a Deus dizendo que Jó só era íntegro e fiel porque o Senhor lhe dava tudo que ele queria, o texto sagrado provou o contrário. O fato de ter perdido seus bens e familiares (e questionar a possível injustiça divina por permitir ou provocar os infortúnios), continuou fiel, e reconheceu que em todos os momentos sua vida foi um milagre, mesmo antes da tão mencionada “restituição”, pela qual ele jamais esperou.

Se é possível estabelecer uma regra, diria que em todas as situações é preciso ter fé, confiar no amor de Deus. Não porque a fé seja chave para milagres, mas porque é um misto de convicção e dúvida, de medo e coragem, mas que gera confiança, e que prevalece independente do resultado. Fé não é otimismo nem esperança. Mesmo sem eles, fé é viver sob a graça, sob o cuidado de Deus.

Outro aspecto a ser observado quanto aos percalços da vida é que Deus, como bom pai que é, mesmo sofrendo com nossas decisões erradas (e que portanto causarão danos e a recorrente busca de um milagre para resolvê-los), parece não interferir sempre. Muitos males, por exemplo, são causados pelo nosso sistema econômico capitalista que é injusto por natureza, uma vez que exclui quem não tem o capital e dificulta o acesso a quem tenta começar de baixo para possuí-lo porque tende a manter o poder sempre nas mesmas mãos; pelos governantes cínicos que elegemos ou deixamos de cobrar; pelas empresas que só enxergam números e lucros ao invés de pessoas; pela nossa falta de cuidado com o meio ambiente, que desregula o clima e gera desastres naturais. Estas estão entre as muitas falhas nossas que despertam tristeza e mesmo indignação no coração do nosso Deus, mas por respeito a nós e pelas regras que ele mesmo criou como a que colhemos o que plantamos, não interfere. Essa aparente ausência faz surgir muitas perguntas e de novo o desejo de manipular o sagrado para resolver problemas que nós mesmos criamos ou que não têm origem aparente. Daí surgem as fórmulas mágicas conhecidas no meio religioso. E foi exatamente esse tipo de religião que, com certa razão, os filósofos chamaram de “entorpencente”, porque tira a consciência do povo e o ilude com truques baratos e respostas vazias para não verem onde o problema está de verdade. Porém, o Deus da Bíblia, por razões não muito óbvias, mas sempre pautado em sua graça e sabedoria, não irá resolver todos os nossos problemas, e aliás, há muitos “milagres” que só nós mesmos vamos fazer, quando cumprirmos nossa responsabilidade como a de mudar hábitos e valores, prestar atenção nas nossas escolhas, colocar o amor em prática, fazer menos mal ao próximo e ao meio ambiente.

Já vi e soube de muitos milagres que Deus fez. Laudos médicos, expectativas sociais e princípios religiosos já foram contrariados por ações que só podemos atribuir ao Ser Divino. E como bem disse um famoso pensador cristão, a coisa mais impressionante sobre os milagres é que eles acontecem!
Mas, o poder de que Jesus falou foi para ir mais além disso, porque nos tempos de Jesus não faltavam curandeiros e pessoas que faziam coisas especiais. Às vezes o mestre reconhecia que milagres poderiam acontecer, mas isto não era garantia de que o seu mediador estava de fato comprometido com valores do Reino.

Além disso, as curas e milagres são, na maioria das vezes, paliativos porque não resolvem definitivamente os problemas da humanidade. Mesmo assim são combustíveis para nossa fé, e força para nossas mãos e pés para trabalharmos em um projeto maior, que inclui milagres, mas não faz deles um fim em si mesmos. Esse projeto é o convite de Cristo para a construção do Reino em cada coração que o acolher e que isso se transforme em ações para revolucionar as coisas ao redor. O desejo de Deus é que haja menos injustiça, menos dor, menos fome, menos violências, menos destruição, menos vícios, mais amor, mais esperança. 

Se ainda restar dúvidas de que essa é a nossa tarefa e se a nossa fragilidade ou qualquer outra dificuldade quiser nos impedir, ouça o que Jesus disse aos seus discípulos/as: "Eis que vos dou poder!", mas para o caso de não termos entendido o sentido e nos sentirmos tentados a perder o foco, Paulo completa dizendo que "temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que esse poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós". O poder de Deus não está à nossa disposição. Nós é que temos que estar à disposição de seu poder transformador e gerador de vida. É esse poder que nos capacita a fazer sinais, não só de prodígios, mas principalmente, os de que o reino de Deus já começou em nós e se expandirá através de nós. Graça e sabedoria da parte de Deus estejam sobre nós!

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