5 de out. de 2012

Em tempos de eleições e comércio, cuidar dos pequeninos ainda é uma exigência do Reino



Por Wallace de Góis Silva

Marcos 9.38-50


Os evangélicos brasileiros, inegavelmente, estão virando uma grande potência econômica, política e social devido ao seu crescimento numérico que já alcança a casa dos 40 milhões. Nas últimas eleições presidenciais, o tema da religião, principalmente cristã, foi uma carta na manga utilizada pelos políticos. A presença da candidata evangélica, Marina Silva, do PV, e os rumores que envolviam o então candidato à vice-presidência pelo PT, Michel Temer, acusando-o de satanista e outras coisas mais, tentando impedir a praticamente inevitável eleição de Dilma Roussef, mostraram um pouco desse fenômeno. Instâncias de alto poder da Igreja Católica também se pronunciaram publicamente contra propostas que ferem seus preceitos. Faltando poucos dias para as eleições, líderes importantes como o pastor Silas Malafaia divulgaram abertamente o apoio a José Serra, então principal rival de Dilma. O fato estava dado: os evangélicos podiam não ter número ou influência para eleger um presidente, mas puderam ao menos dificultar a eleição. Por isso, na presente campanha eleitoral, os candidatos às prefeituras tem recorrido à ajuda dos evangélicos, e estes, em muitos casos, lançam seus próprios candidatos, num fenômeno denominado “voto de cajado”, que já tem sido discutido com propriendade em outros espaços, e por isso, nos limitamos a não entrar nesse assunto.
Tanto quanto envolvidos na política, os evangélicos já provaram ser um público comercial bastante promissor. Daí o interesse de gravadoras e editoras não religiosas editarem materiais gospel. Além disso, cresce cada vez mais a variedade de produtos e serviços e a quantidade de marcas e empresas que nascem de dentro do próprio movimento evangélico, que vão desde a industrialização dos elementos da Santa Ceia e do batismo, até à venda de maquiagens e roupas de “artistas” evangélicos. Vê-se uma tendência cada vez mais forte de comercialização da fé, e uma parte disso pode ser vista em eventos como a ExpoCristã.

Não me oponho à participação política dos evangélicos (pelo contrário) e nem ao uso dos recursos comerciais e tecnológicos para divulgar a fé cristã e prover meio de subsistência das igrejas e funcionários envolvidos. O que me preocupa é que os valores do Reino de Deus estão sendo deixados de lado, e por isso, existem tantos escândalos envolvendo pessoas e organizações cristãs. Os exageros na busca de lucros, disputas de poder, rivalidades e individualismo entre os cristãos, tem ofuscado a luz de Cristo, enquanto, em nosso país cada vez mais cresce a injustiça social, os pecados contra a vida e a carência de uma espiritualidade sadia, mesmo havendo tantas igrejas. E sobre isso, Jesus chamou a atenção de maneira firme no texto bíblico de Marcos.
Em rápidas palavras, a passagem lida mostra alguns temas que confrontam problemas bastante atuais, a saber:

Humildade e prática do bem (v. 38-41): os discípulos viram um homem expulsando demônios e o repreenderam porque este não fazia parte dos doze discípulos. Mas, Jesus os corrige, ensinando-os a serem tolerantes, pois se aquele homem o fazia em nome de Jesus, não estava contra ele. O Mestre ensinou-lhes também algo sobre humildade, porque na narrativa que vem exatamente antes, os discípulos estiveram diante de um jovem possesso por um espírito mau, mas foram incapazes de expulsá-lo (Mc 9.14-29). Completa ainda dizendo que dar um copo de água fria a alguém já era algo digno de recompensa. Em suma, tudo o que se faz, com a intenção de fazer o bem, desde expelir demônios (aos quais eram atribuídos os males mais graves), a dar de beber um copo de água fria, eram atos de bondade, praticados por pessoas de quem não se esperava, mas que faziam.

Cuidado com “os pequeninos” (v. 42): O autor do evangelho de Marcos não colocou este ensinamento de Jesus, neste lugar, à toa. Em contraponto aos de fora do círculo dos doze que faziam o bem, aqui nós temos um conselho aos que são de dentro: quem fizer um pequenino tropeçar (sofrer e parar de acreditar no amor de Deus), é melhor ser atirado no mar com uma grande pedra no pescoço. Nos ensinamentos do filho de Deus, os pequeninos são muito importantes, e se tratam de pessoas frágeis. O exemplo mais extremo da fragilidade humana é o da criança, que inclusive, poucos versículos antes (33-37), foi tomada como exemplo para quem quiser participar do Reino de Deus. Mas, pessoas que sofrem de enfermidades, que portam deficiências físicas, que sofrem maiores privações sociais, pessoas idosas, mulheres e jovens que sofrem violência, menores abandonados, pessoas em situação de rua, pais de família sem esperança de ter um emprego, pessoas ricas que são presas pelo próprio poder, pobres que são oprimidos, em geral, também podem ser “pequeninos”. E, a estes, tanto quanto oferecemos às nossas crianças, devemos proporcionar-lhes alívio, repelindo os “demônios” que assombram suas vidas, como o preconceito, o abuso, os pecados morais, vícios, a dificuldade de mobilidade, as drogas, a falta de amor e de paz, e no lugar disso, dar um “copo de água fria”. A água é um refrigério em meio a um deserto, ou o amor de Deus, que através de nós, traz dignidade e paz a todas as pessoas por meio do evangelho que pregamos e vivemos.

Esforço para evitar ser um motivo tropeço (v. 43-48): Exemplificando com um exagero linguístico, Jesus diz que para evitar o tropeçar (que no contexto, é fazer um pequenino deixar de crer no amor do Pai), é melhor mutilar a si mesmo, arrancando um olho ou amputando membros, do que sofrer as consequências de quem faz isso: “ser lançado no inferno, onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga”.
A palavra “inferno” aqui faz referência ao vale de Hinom (ou Gehena), que era um lixão, próximo de Jerusalém, onde antes havia um altar ao deus Moloque, que exigia sacrifícios de crianças (o que entendemos simbolizar a crueldade para com os pequeninos). Esse vale foi transformado pelos habitantes da região de Jerusalém em um depósito de lixo e de cadáveres de indigentes e pessoas que cometeram atos repugnantes. Algumas partes desses detritos eram decompostas por vermes, que por nunca faltar alimentos, pareciam nunca morrer. Em outras partes, conseguiam atear fogo, mas, pelo mesmo motivo, este parecia nunca se apagar. Um lugar eternamente desonrado, fétido, que exala fumaça e calor intenso, serviu de imagem perfeita para a concepção uma imagem de inferno. Esse é o lugar onde merecem ser lançados aqueles que negligenciarem ou mesmo propositadamente, fizerem um pequenino tropeçar! O teólogo francês, François Varillon, disse que “o inferno é a solidão onde o amor já não pode entrar”, e é justamente a isso que o Reino de Deus se opõe, cujas portas, são o próprio amor. 

Sobre o sal (v. 49-50): O sal era um elemento valioso na antiguidade. Servia para salgar e conservar alimentos, e até mesmo para selar contratos importantes. A palavra “salário” tem a ver com o pagamento que em algumas culturas era feito com sal.
O versículo 49 é de difícil interpretação. Mas ele representa uma transição entre o inferno e a recomendação que virá a seguir, que na verdade é o que de fato opõe o inferno: manter a paz com todas as pessoas. Jesus afirma que todos serão “salgados com fogo”, o que pode ser uma referência ao ciclo eterno de consumo pelas chamas do Gehena, que ao mesmo tempo parece ser eterno, porque sempre há combustível. Mas, pode apontar para uma característica do sal e do fogo: este, provocado pelo amor, que em Cantares é “uma faísca de Deus” (Ct 8.6), queima constantemente aquilo que não é bom. Já o sal é usado para conservar e temperar o que é bom, incluindo a paz e o cuidado entre as pessoas, e esse cuidado pode se expressar em atos extraordinários como rituais de exorcismo, ou, com igual valor, a um singelo, mas revigorante, copo de água.

Seja na política ou no mercado financeiro, quem se diz cristão não pode deixar os pequeninos tropeçarem. Se ocuparem as câmaras, os tribunais ou o executivo, os verdadeiros discípulos de Jesus estarão lá exclusivamente para cuidar de quem precisa, preferindo amputar seus próprios interesses de obter poder e riquezas a ferir aquelas e aqueles por quem Deus tem grande amor. Se forem líderes de igrejas ou membros comuns, levantarão a bandeira da paz e da justiça que o evangelho traz em suas comunidades, bairros e cidades. Quando diante dos poderes econômicos, procurarão lucrar com honestidade, e ajudar quem não tiver a mesma sorte. Tudo o que fizerem, pensarão não só em si mesmos, mas também no próximo. Tudo isso, porque, é melhor “abraçar o projeto do Reino de Deus nos faltando algum conforto, do que no final de tudo, tudo o que fizemos e fomos, fazer-nos dignos do lixo, onde há a vergonha que queima e nunca se apaga, e a solidão imortal, que a tudo devora” (paráfrase livre)

Sermão exposto na Igreja Metodista em Tatuapé, SP. 
Inspirado no texto do Rev. Luiz Carlos Ramos: http://www.luizcarlosramos.net/meus-companheiros-tambem-vao-voltar/

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