Por Wallace de Góis Silva
Lucas 10.1-9,16-20
Por muitos anos circulou entre os lares evangélicos o famoso quadro “Os dois caminhos”. A conhecida gravura, publicada principalmente durante as décadas de 1930 e 1950, expressava a diferença entre o “Caminho da Perdição” e o “Caminho da Salvação”, que imprimia o imaginário protestante da época sobre a parábola dos dois caminhos. O primeiro com a estrada e a porta largos, e o segundo, com uma porta estreita e um caminho estreito, pelos quais não seria possível entrar se carregassem muita bagagem (como pecados morais, desrespeito aos bons costumes cristãos à sobriedade, interesse e prática dos “prazeres mundanos”, etc).
No caminho largo, havia muita gente, diversão, promiscuidade, violência, tecnologia e urbanização. Logo na entrada, Baco e Vênus, deuses romanos da bebida e do sexo, estão segurando a placa de boas vindas. Entretenimentos como casa de show e cassino não faltam. No caminho estreito, bastante simples e rural, encontram-se edifícios e instituições religiosas, com poucas pessoas em redor.
Tudo é observado por Deus, pintado como um olho (símbolo da onisciência) dentro de um triângulo (fazendo alusão à Trindade).
Ao final do caminho da perdição está o fogo eterno – o mesmo que consome a cidade – e ao final do caminho da salvação está o céu, representado pelos anjos e pela glória da eternidade.
O quadro permaneceu por muitos anos nas paredes das casas dos protestantes, utilizados na evangelização e no discipulado. Durante esse período, a fé piedosa e dedicada dos crentes era bem expressada no quadro, sobretudo porque as comunidades cristãs estavam presentes, principalmente nas zonas rurais. No entanto, com as constantes migrações dos habitantes do interior para as capitais, também com a modernização e industrialização das zonas rurais e outros fatores, as características próprias de cada região interiorana foram se mesclando às realidades das grandes cidades, em muitas partes do mundo. Logo, o estereótipo de vida cristã foi se desassociando, em muitos aspectos, da rotina pacata e simples da vida no campo.
Ademais, a imagem negativa das grandes cidades permanece até hoje em círculos evangélicos, e a atuação das igrejas continua ainda com costumes rurais, em plenos centros urbanos. É bem verdade que muitas coisas que encontramos nas cidades são convites à promiscuidade, imoralidade e injustiça social, no entanto, coisas que antes eram tidas como veículos do pecado, tais como a televisão, o teatro, as rádios e outros, hoje em dia são largamente utilizados pelos cristãos, tanto para a divulgação da fé, quanto para a diversão.
Mesmo assim, ainda existe certa dificuldade para enxergar a cidade como um lugar que necessita de atuação missionária específica, adequada ao modo de vida e às rotinas dos grandes centros e megacidades.
Na passagem bíblica mencionada no início, Jesus envia “outros setenta”, com prerrogativas e tarefas semelhantes as dos “doze”. O número setenta é uma tradicional contagem das nações gentílicas, isto é, dos povos não judeus, fora do contexto de costume dos discípulos. Esse relato só aparece em Lucas, que escreve seu evangelho para cristãos gentios, ressaltando a inserção destes na missão deixada por Jesus. Eles deveriam preceder Jesus nas cidades por onde ele passaria posteriormente.
Os setenta discípulos representam a abertura do Reino de Deus, que abrange não só uma determinada região ou cultura, mas todas as nações da terra. O judaísmo foi o precursor do cristianismo, mas o Espírito Santo que atuou em pentecostes (At 2) não admite a limitação das boas novas somente aos judeus, pelo contrário, excede a qualquer barreira étnica, social ou econômica.
Tendo isso em mente, Jesus separa pessoas que devem proclamar a chegada do Reino a todas as casas e cidades que as receberem. A missão era difícil e passível de perseguições, pois seriam enviados como ovelhas para o meio de lobos, ou seja, muitos perigos e situações difíceis os aguardavam (e talvez por isso, no texto os trabalhadores sejam poucos para a seara). Para alcançar o objetivo, deveriam manter o máximo de dedicação, deixando para trás as bolsas, as sandálias extras e até mesmo o alimento. Os setenta deveriam apenas confiar na provisão que Deus daria no caminho, por meio de casas e cidades que os acolhessem.
Era-lhes vedado até mesmo que saudassem alguém pelo caminho, talvez para que não perdessem de vista seu alvo principal: anunciar as novas de Jesus. A proibição possivelmente venha do fato de que as saudações da época eram longas e isso atrapalharia o desempenho, e aponta para a necessidade de fixar as atenções ao objetivo proposto.
Nem todos receberiam os anunciadores do Reino com hospitalidade, mas isso não deveria desanimá-los, pois outros receberiam de bom grado sua saudação de paz. Interessante é que “pelo caminho” ninguém deveria ser cumprimentado, mas sim quando chegassem às casas e cidades onde deveriam atuar, porque a situação e atuação são diferentes. No caminho, todo mundo é simpático e acolhedor, porque as relações são breves e descompromissadas, e geralmente são pessoas conhecidas. Nas casas e cidades desconhecidas, perceberiam a receptividade ou não por parte das pessoas que ouviriam a mensagem do Reino de Deus, e é assim que percebemos quem de fato está disposto a abraçá-la. O evangelho só transforma, quando entra nos lares das pessoas, e não simplesmente num breve encontro superficial, de margem. Mesmo que o tema do caminho nos ensinos de Jesus seja transformador, nesse caso, o caminho não representava um lugar onde deveria se gastar tempo.
Hospitalidade e acolhimento eram características louváveis nos tempos de Jesus, mas receber de coração a pregação de outra concepção de mundo e de religião não era tão simples, embora as grandes massas, de um modo geral, gostassem de anúncios proféticos e contestatórios dos poderes dominantes. Como fruto da aceitação, seriam alimentados e acolhidos.
Em tais lugares, seriam canais de cura (sinais do Reino) e anunciariam a iminência do Reino de Deus (testemunho). Não somente maravilhas, mas vivência integral da fé e testemunho dela no mundo. As curas seriam meios pelos quais a justiça do Reinado do Senhor seria demonstrada de forma prática, o que reafirma a esperança da paz. A elas também podemos atribuir uma função testemunhal, e longe de querer promover seus discípulos, a ideia de Jesus seria muni-los do poder de Deus, para que exercessem o bem, restaurassem as vidas e trouxessem dignidade e felicidade às pessoas sem esperança e discriminadas por suas dificuldades. Ainda hoje, a cura é uma prova empírica daquilo que o Reino do porvir pretende ser, pois, lá não haverá doença alguma.
Mas, em contrapartida, o alerta é para a dimensão iminente do Reino, pois deveriam dizer que está próximo, pois Jesus o estava inaugurando. O governo de Deus começaria nos corações daqueles e daquelas que o recebessem, e a partir destes, tomaria forma através de atos de justiça, amor, misericórdia e santificação moral e social.
Como era se esperar, muitos rejeitariam a proposta dos discípulos de Jesus, mas eles não deveriam desanimar, pois sua tarefa estava sendo cumprida e no final, todos dariam conta a Deus, pois rejeitando seus enviados, rejeitam quem enviou.
Empolgados com os sinais, os setenta voltam contando como os demônios lhes eram submetidos pelo nome de Jesus, mas este os alerta sobre a verdadeira glória: estar com o nome inscrito no céu, ou seja, constando no rol de um projeto maior e eterno, que é assegurado eternamente por Deus, e não se limita a efemeridade dos sinais.
Tendo essas percepções em mente, as discípulas e discípulos de Jesus no século XXI precisam preceder o Senhor em cada cidade, casa e coração, mostrando pelo testemunho, aquilo que o Reino de Deus trará plenamente no futuro. Não devemos temer a rejeição e nem nos iludir com os milagres que por nossas mãos Deus fará, e sim, termos sempre em mente que fomos chamados e enviados para pregar e viver o evangelho.
Seja nos grandes centros urbanos ou nos pacatos vilarejos rurais, nossa mensagem deve ser fruto de uma verdadeira transformação de nossas vidas e devem falar a língua que o contexto pedir, sem, no entanto, se descaracterizar pelo secularismo e nem pelo legalismo.
No interior dos Estados (que já não são tão calmos e bucólicos assim), observaremos como podemos inserir o evangelho na rotina regrada e simples da gente de roça, comprometidos com suas tarefas rurais, as mercearias e a vivência comunitária marcante. Nas megalópoles, usaremos os recursos que estiverem disponíveis, adaptaremos nossas atividades à vida ocupada e corrida da população e encontraremos formas de em meio a tanta insensibilidade e depressão que a pressa e competição urbanas causam, apresentar a esperança do evangelho da paz. E isso tudo, até que o Senhor volte e complete em nós e por nós a missão que nos deixou, e que é a nossa razão de existência. Seja hoje ou daqui a muitos anos, que nossa esperança e motivação seja essa: Marana tha! Vem Senhor Jesus!
(Sermão para o culto de Missões em Vl. Ferreira, SBCampo, SP. Setembro de 2011)
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