5 de jul. de 2011

Acima de traidores e reis: maior é quem serve

Por Wallace de Góis Silva

Lucas 22.14-30

Jesus instruiu seus discípulos quanto ao lugar em que deveriam preparar a Páscoa, sendo aquela a última que participaria com eles. O lugar era um espaçoso cenáculo mobiliado, possivelmente numa grande casa. A Páscoa (do hebraico pessah = passagem) era a festa judaica do livramento da morte dos primogênitos, em que o anjo da morte “passou por cima” e não entrou nos lares do israelitas. Celebrava também a libertação do cativeiro egípcio. Nela utilizavam-se os pães sem fermento, ervas amargas e um cordeiro era sacrificado.

Jesus dá novo significado ao pão da páscoa, que passaria a simbolizar seu corpo, e também reinterpreta o vinho (elemento acrescido à Páscoa posteriormente), que daquele dia em diante faria lembrar seu sangue.

O Senhor queria muito participar com os amigos (e amigas, pois ao que tudo indica, Maria Madalena e outras mulheres também compunham o círculo de amizade de Jesus), que estiveram com ele em momentos difíceis. Ele não tornaria a fazer isto até a concretização do Reino, que é a restauração da vida e da paz, quando vier a ressurreição. O texto que sucede a última ceia em Lucas é outra perícope (trecho), mas dá continuidade à ideia da função da mesa na comunhão, pois é nela, que segundo Jesus, sabe-se a diferença entre quem é maior ou menor. A humanidade verá a grande ceia novamente, e os “menores” se sentarão à mesa para serem servidos pelos “maiores”. Jesus nos desafia a vivermos desde já esse paradoxo do Reino de Deus, levando conosco suas marcas.

Mesmo sendo um momento de comemoração, era também uma angustiante despedida, da qual até mesmo o traidor participara. O medo aumentava a cada instante pois sabia que a hora se aproximava. Há tempos os mestres judaicos planejavam matar Jesus.

Naquela mesa, dividido entre a gratidão e a tensão, Jesus se fez servo. Deu pão e vinho até mesmo ao Judas Iscariotes, seu traidor. Independentemente das circunstâncias, na mesa ele estava sempre a vontade e era lá que sempre era reconhecido. Jesus não fingiu que não sabia da traição, pelo contrário a tornou evidente ao mencionar a presença daquele que o vendeu aos inimigos, mas não disse quem era, apenas confirmou quando ele próprio confessou (cf. o relato de Mateus).

Divulgar a presença de um traidor provocou um mal estar entre os discípulos, que revelando a insegurança quanto à fidelidade que eles próprios afirmavam ter, perguntaram-se uns aos outros quem seria o traidor. Essa pergunta na verdade escondia um medo sempre presente: o de serem considerados menores, insignificantes, pois a discussão que vem no parágrafo seguinte trata de saber quem teria os melhores lugares no Reino de Deus (ou no que eles imaginavam ser o reino). Um traidor exposto com certeza não sentaria numa cadeira de honra. Expuseram o medo de serem descobertos em suas dúvidas, angústias e traições (consumadas ou apenas cogitadas), frutos de uma possível decepção com o messias político e revolucionário, que esperavam de Jesus; o medo de estarem enganados a respeito dele; o temor da iminente prisão. Descobrirem que não era “o traidor”, também mostraria que eram superiores, e mereceriam posições de destaque naquilo que entenderam ser o Reino de Deus, por causa de sua lealdade.

Seja como for, o Mestre ensinou na prática, quem de fato é o maior. Um dos princípios mais fascinantes que Jesus deixou é o da humildade. Acima do sentimento de total indignidade da traição e o orgulho de se sentir na melhor posição está o serviço. No Reino de Deus, quem serve é maior. Nessa passagem, o Senhor perpassa por três condições da humanidade decaída:


a) traição, que representa o estado de depravação e queda. Um estado de vergonha e destituição da glória de Deus, desde o Éden, quando a humanidade traiu a confiança de Deus. O tipo mais indigno de ser humano é aquele que trai.
b) superioridade. Nesse aspecto é a religiosidade e o orgulho de uma pretensa santidade por méritos. Querer saber quem era o “maior” era na verdade o desejo de saber quem era mais digno de recompensa. Jesus repreendeu os fariseus que se sentiam melhores que os outros (cf. parábola do fariseu e do publicano).
c) serviço. Quem serve está acima dos traidores e dos reis que são exaltados pelo povo. Mas só está acima porque antes decidiu servir. Isto é um sinal de transformação, uma evidência de um encontro verdadeiro com o amor de Deus. Em plena mesa de despedida e anúncio de sua paixão, Jesus ensina seus discípulos a verdadeira posição de um rei, a qual ele mesmo assumiu: a diaconia.

Assistir aos necessitados em suas faltas, defender a paz em situações de conflitos e guerras, lutar pela justiça, anunciar o evangelho, praticar a honestidade, oferecer ombro amigo a quem precisa... são marcas de fiéis seguidores de Jesus, que carregam sua marca no corpo e na alma.

Servir aos outros e fazer deles maiores do que nós mesmos é caminhar para a grandeza. Enquanto quisermos ser maiores, seremos como os traidores ou os hipócritas. O amor de Deus nos constrange a amá-lo acima de tudo e ao nosso próximo como a nós mesmos.

Judas Iscariotes e Pedro tentaram ser maiores, levar vantagem financeira ou “tirar o corpo fora” antes que fossem presos junto com Jesus. O dinheiro e os interesses pessoais dominaram o coração de Judas, e Pedro se deixou levar pela tentação de negar sua amizade com o galileu preso, humilhado, e de admitir que suas expectativas forma frustradas. Ambos, como a maioria dos seguidores de Jesus, esperavam um rei que tiraria Roma do trono e o devolveria a Israel, o que de fato acontecerá quando o Senhor voltar, mas em momentos de fracasso, o imediatismo e a falta de fé os levaram a cair.

Jesus confia a mensagem do Reino aos discípulos, da mesma forma que Deus lhe confiou. Assim, o Senhor repassa a missão aos seus doze, e lhes promete lugar de honra em seu Reinado. Judas, no entanto, se corrói de remorso, de frustração e se mata; rendeu-se mais uma vez à covardia e ao orgulho. Pedro nega a Jesus, mas sente o peso do olhar do mestre, que embora decepcionado, ainda era de misericórdia. Entre os dois traidores, houve um que ousou reconhecer seu erro e tentar corrigir sua vida, dedicando-a ao serviço. Quem não está disposto a servir, só alimenta sua ganância e vaidade, e quando essas são frustradas, não resta mais nenhuma outra razão de viver, e como Judas, se enforca em seu próprio orgulho ferido. Somente um entregar-se voluntário e sem reservas à graça de Deus é que pode nos transformar em servos e servas verdadeiros. Essa rendição traz restauração de nosso ser, nos faz enxergar nossos erros e querer corrigi-los, e não nos entregar a eles de modo que nos sufoquem, nos enforquem.

O fato de terem visto Jesus estar à beira de sua morte, fez suscitar nos discípulos as mais diversas reações. Como todo ser humano, eles mostraram quem realmente eram, pois estavam sob pressão. Viram seus ideais políticos a caminho da frustração e sua imagem perante a sociedade sendo envergonhada, porque não estavam vendo o cumprimento daquilo que imaginavam e pregavam ser o Reino de Deus. Pela ansiedade em ser grandes, se fizeram traidores. Só entendeu realmente, quem se dispôs a servir, a estes, no futuro, teriam a posição de juízes, ou seja, que aplicam a justiça.

No partir do pão e no compartilhar do vinho, Jesus anunciou o início de uma nova aliança, em que a salvação alcançaria traidores e orgulhosos, para transformá-los em servos. Que o corpo de Jesus nos lembre de carregarmos em nós mesmos as marcas de Cristo: amor, paz e justiça e que seu sangue nos purifique de nosso orgulho, ganância, e vaidade, para que possamos ser verdadeiros servos e servas, imitadores de Cristo e promotores de seu Governo, em palavras e em ações.

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