Por Wallace Góis
Quadro do artista Claudio Pastro. |
O cristianismo é evidência interessante de que perseguidos
podem se tornar perseguidores e vice-versa. Desde Paulo, o zeloso fariseu e
defensor da “verdade”, que mandava matar cristãos como forma de expurgar o que
considerava um crescente mal, que se tornou um dos mais importantes missionários
da igreja primitiva, passou a estar em situações de prisão, ameaças, injúrias e
intolerância religiosa pelos seus antigos correligionários e também por outros
grupos. O próprio Cristo, é claro, foi vítima de intolerância religiosa e
acabou morto por isso, acusado de blasfêmia por reinterpretar a fé na qual foi educado. Seus discípulos também sofreram perseguição e hostilidade.
Ao longo da história, porém, o cristianismo ascendeu a império e atingiu proporções mundiais e privilégios até então impensáveis. Em alguns momentos e lugares viu-se, contudo, ameaçado pelo islamismo que tratou os cristãos com vários níveis de (in)tolerância ao longo da história. Hoje se sabe que a maioria islâmica também professa a paz, mas já houve tempos de sangrentas batalhas entre fiéis de ambas as confissões. A Igreja, por sua vez, perseguiu judeus, muçulmanos, religiões de matriz africana e condenou muitos de seus seguidores à marginalização, na melhor das hipóteses. Em outras partes do mundo, porém, onde são minoria como na Ásia, são por isso vítimas de outros grupos, até mesmo de determinados segmentos do budismo e do hinduísmo.
No Brasil, os evangélicos, antes perseguidos pelo catolicismo, são hoje uma importante parcela do eleitorado e crescem em influência política, mesmo não sendo maioria. Agora são acusados, muitas vezes com razão, de perpetuarem intolerâncias enraizadas na cultura e na religiosidade popular ou institucional, com fortes acentos raciais, econômicos e sociais. Traço marcante é também a intolerância interna entre os próprios evangélicos devido às diversas interpretações das Escrituras e dos dogmas. As maiores vítimas do preconceito religioso, curiosamente, são as que tem crenças de origem afro-brasileira. Para pensarmos o tema da intolerância religiosa a partir de conceitos cristãos, nada melhor do que uma passagem em que Cristo praticou o oposto da intolerância, que é mais do que simplesmente tolerar, é humanizar, produzir vida. Vejamos a história de Jesus conversando com a mulher samaritana, de acordo com o evangelho de João (4.1-29).
Ao longo da história, porém, o cristianismo ascendeu a império e atingiu proporções mundiais e privilégios até então impensáveis. Em alguns momentos e lugares viu-se, contudo, ameaçado pelo islamismo que tratou os cristãos com vários níveis de (in)tolerância ao longo da história. Hoje se sabe que a maioria islâmica também professa a paz, mas já houve tempos de sangrentas batalhas entre fiéis de ambas as confissões. A Igreja, por sua vez, perseguiu judeus, muçulmanos, religiões de matriz africana e condenou muitos de seus seguidores à marginalização, na melhor das hipóteses. Em outras partes do mundo, porém, onde são minoria como na Ásia, são por isso vítimas de outros grupos, até mesmo de determinados segmentos do budismo e do hinduísmo.
No Brasil, os evangélicos, antes perseguidos pelo catolicismo, são hoje uma importante parcela do eleitorado e crescem em influência política, mesmo não sendo maioria. Agora são acusados, muitas vezes com razão, de perpetuarem intolerâncias enraizadas na cultura e na religiosidade popular ou institucional, com fortes acentos raciais, econômicos e sociais. Traço marcante é também a intolerância interna entre os próprios evangélicos devido às diversas interpretações das Escrituras e dos dogmas. As maiores vítimas do preconceito religioso, curiosamente, são as que tem crenças de origem afro-brasileira. Para pensarmos o tema da intolerância religiosa a partir de conceitos cristãos, nada melhor do que uma passagem em que Cristo praticou o oposto da intolerância, que é mais do que simplesmente tolerar, é humanizar, produzir vida. Vejamos a história de Jesus conversando com a mulher samaritana, de acordo com o evangelho de João (4.1-29).
Quando a mulher de Samaria perguntou para Jesus sobre o
lugar verdadeiro para adorar a Deus ou sobre a forma mais acertada de prestar
culto, Jesus, a pessoa central do cristianismo, não negou sua própria espiritualidade e as influências de sua origem judaicas, mas relativizou a importância de um lugar exclusivo ou estrutura
religiosa como o templo de Jerusalém ou as ruínas do templo do Monte Gerizim,
de Samaria, para se achegar ao divino.
Naquele dia o Nazareno estava indo do sul para o norte da
Palestina, saindo de Jerusalém (Judeia) para a Galileia (antigo Israel norte),
área periférica onde moravam judeus, e de onde convidou seus primeiros
discípulos e iniciou sua pregação. No meio do caminho para lá ficava Samaria, capital do antigo reino
de Israel que foi tomada pelos assírios séculos antes de Cristo e, com isso,
sua identidade judaica foi mesclada a outras culturas, o que não deixou de
influenciar a religião. Para os do sul, mesmo 500 anos depois de também terem
sido exilados e terem passado por diversos processos de transformação em todas
as áreas, os samaritanos é que eram considerados impuros, mistos e idólatras, porque estavam
fora do arraial do poder sacerdotal. Diziam que os da região de Samaria trocavam de “marido” (isto é,
de deus) como quem troca de roupa, pois os vários lugares sagrados
estabelecidos no Reino do Norte por causa da proibição de irem para o Sul depois da divisão, eram
considerados falsos por causa da pretensa exclusividade de Judá que detinha como capital a cidade do templo, Jerusalém.
De fato, os judeus do sul se consideravam os grandes
detentores da verdadeira religião e da obediência à lei. Contudo, já naquela época não se
podia falar em um só tipo de judaísmo, porque havia muitas subdivisões, disputas e mesmo inimizades entre os diversos grupos. Tantas eram as leis e tradições – reflexo do
mundo em que estavam inseridos – que proibiam o contato com samaritanos –
inclusive beber água no mesmo copo que eles –, e de conversar com mulheres em
público. Outra amostra do espírito da época foi o de que também convencionaram que qualquer motivo justificaria o repúdio
contra uma mulher (Mt 19.3), o que pode explicar o fato de aquela mulher do texto já ter tido “cinco
maridos”. Evidentemente, ela personificava a desumanização que a cultura, o
modelo de sociedade e a religião vigentes provocavam em pessoas que eram
colocadas em situação de desvantagem, principalmente mulheres estrangeiras.
Jesus, o Cristo do evangelho de João, se revelou para ela como quem veio trazer a
verdadeira interpretação de Deus: não se busca o Pai subindo montanhas ou
construindo templos em cima delas. Deus é quem busca os verdadeiros adoradores,
isto é, aqueles que buscam adorá-lo em espírito (fora de amarras institucionais,
dogmas e de paredes da religião) e em verdade (com intenção boa, vontade
sincera).
A conversa se deu na beira do poço atribuído ao patriarca
Jacó/Israel, na cidade samaritana de Sicar, onde hoje há uma igreja ortodoxa
que preserva o poço. Aquele poço era uma relíquia para o povo do norte e
importante fonte para narrativa de que tinham conexões com o grande pai Jacó.
Além disso, o poço era fonte de água e de vida. Jesus pediu água para aquela
mulher, que era samaritana e foi várias vezes repudiada. No mínimo, acumulava
intensos traumas e dores. Quer dizer, essas eram as descrições feitas sobre
ela. Por isso estava sozinha, buscando água em pleno meio dia. Mas, em momento
algum Jesus a tratou pelas características que davam ela, porque, para ele, ela
era nada menos que imagem de Deus, humana e, pelas perguntas que fez, mostrou que
era verdadeira porque estava em busca da verdade. Definitivamente, ela reunia
todas as características que fariam com que o divino a buscasse!
Jesus, como todo ser humano, teve sede. O mesmo motivo que a
levou ao poço. Ao mesmo tempo, Jesus representava o ser divino que busca por
verdadeiros adoradores e não se permite achar pelos que não são. Como judeu,
justificou sua história e sua maneira de ver o mundo. Como Cristo, mostrou que
muito do que sua própria tradição, como também as outras, cria não coincidia
com a vontade de Deus. Ele ofereceu a ela uma água que jorra para a vida eterna
e sacia a sede da alma dos que querem achar Deus. Esta água não estava no poço,
na montanha e nem no templo, porque, assim como a água não pode ser contida por
estruturas e credos, o divino também não.
Mas, a postura de Jesus revelou muito sobre intolerância
religiosa e outros preconceitos. Em primeiro lugar, ele demonstrou que as
religiões são tentativas limitadas de buscar a Deus, porque, na verdade, é Ele
quem procura por aqueles que, à priori, entende ser verdadeiros. Em segundo
lugar, as religiões institucionalizadas não são fontes completamente fidedignas
de informações sobre a realidade divina: elas podem, isso sim, oculta-la e
transmitir ódio, separação, intolerância, imposição de rótulos e desumanizar
tudo que é diferente ou discorda. O resultado é que aquela mulher abandonou seu
jarro de pegar água, mas voltou para casa sem sede. Ela superou a tentativa de
conter a verdadeira vida em um vaso.
Quando Jesus, no mesmo evangelho, disse que é o caminho, a
verdade e a vida, não pretendia fundar mais um grupo exclusivista radical. Aliás,
ele rompia assim com essa lógica. Estava afirmando que a verdadeira religião
não se restringe a um esquema litúrgico, a regras sacrificiais e códigos de
conduta. Ela se dá no caminhar, na conversa, na humanização, no perdão, na
prática do amor, na contradição e limitação humana e, principalmente, na
inciativa de Deus em procurar pelas pessoas que criou à sua imagem e
semelhança. Esse é o princípio da graça revelada àquela mulher, que na verdade
não era só uma samaritana. Representava todo o seu povo que era colocado para fora
do esquema religioso, político, social considerado verdadeiro e, por extensão, a
todos/as nós. O cristianismo, para Jesus, não é a verdade. Ele próprio é a
verdade que não fica parada, estática: está sempre no caminho e, não descansa
até que o fruto dela seja a vida.
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